Estavam todos às voltas com os sapatos guardados da minha avó que, silenciada pelo tempo, havia muito não colocava os pés na rua. Muitas coisas naquela casa estavam igualmente emburradas: a geladeira que nem o som da ferrugem fazia mais; o fogão aposentado desde que ela começou se esquecendo das receitas e por fim se esqueceu do gosto de qualquer comida, aliás, esqueceu a vontade do gosto...
Bom, mas estavam todos às voltas com os sapatos. Os mais recentes eram os rasteiros, os últimos a verem a cara da rua. Os mais novos, pisantes ainda lustrados de loja, tinham a maioria o solado intacto. Nunca tinham visto o cheiro da vida fora do armário. Eram de salto alto como ela costumava usar nos bons tempos em que a rua ainda interessava aos pés. Entrei no quarto exatamente no momento em que todos os sapatos estavam expostos na cama para serem doados - o vermelho que ela tanto amava e combinava com a calça... vermelha! O branco liso que ela usava com a saia lápis que jamais soubera esconder a barrigada dos oito filhos; o verde musgo que eu, quando mocinha, cheguei a usar.
Havia dois pares pretos, um deles de verniz com pulseirinha no tornozelo, o outro fosco do tipo vai com tudo. Eram dezenas de sapatos, uns antigos, mas guardados com tanto espírito de clausura que pareciam novos em folha; outros, como disse, eram realmente estalantes de novos.
O quadro era desolador: enquanto uma turma analisava os pisantes encostados espalhados na cama do quarto, na sala, minha avó vestia chinelinhos, e permanecia totalmente avessa ao movimento ao lado; nada mais importava, seus pés não queriam rua. Os olhos viam a rua por obrigação, pois a janela era aberta diariamente para que a falta de ar não a sufocasse de vez. E, mesmo sentada na salinha, mesmo se não quisesse ver o mundo, o mundo conseguia vê-la: da fresta da janela, a rua a via, sentadinha, de chinelinho e meias em pleno verão abafado.
Fiquei me lembrando das tantas vezes em que vi minha avó empombada naqueles saltos imensos, toda combinada e cheia de bijus, colares, pulseiras, anelões... Cabelos montados, blusas de seda. Era tão flagrante o contraste que precisei espanar a lembrança com um leque para não me entristecer. E ali estavam todos diante dos sapatos que seriam doados. Duas portas inteiras do guarda-roupas dedicadas à sapataria. Fiquei pensando na importância que é ter pés de rua.
Quando a mulher perde o gosto de calçar seus sapatos e mostrar ao mundo é porque alguma coisa de muito errado está acontecendo dentro dela. Pensei também em quando foi a primeira vez em que a falta de vontade de ter pés na rua sobressaltou minha avó. Foi talvez ali o começo de todo o silêncio.
O sobressalto de que você fala no "Esquecer-te de mim", ah! esse sobressalto que toma de assalto e resvala por caminhos tortuosos, onde o ânimo não se anima a passar.
ResponderExcluirPara ter pés de rua é necessária uma boa dose de Sol na cabeça. O Sol, que ilumina os caminhos que os pés vão desenhar. Quando esse Sol se apaga, nem no horizonte se vê mais, então, a janela não dá mais pra rua, a porta não dá mais pra rua e os pés, esses pés cansados não de caminhar, mas de tanto carregar o peso que nas costas acumula, esses pobres pés se aconchegam mal e mal no tapete da sala.
Pés de rua pedem rua; é isso: peça a rua e não deixe o Sol partir para além daquele horizonte. Não deixe!
Linda reflexão, Cláudia. Este texto carrega a sabedoria que só o tempo ensina. Adorei.
Faz tempo que o leio, mas hoje é que entrei na história e se isso não acontece, eu não consigo comentar.
Beijo grande e continue sempre com teus pés de rua a caminhar sob o Sol que não esmorece os ânimos!
obrigada por entrar nesta história, amigo. espero que possa e queira sempre estar por aqui :)
Excluiré um silêncio esquecimento que vai se alojando nas dobras que o tempo faz na pele... A hora que ele irrompe, ñ há sapato que dê conta. Lindo olhar sobre o mistério da passagem do tempo na alma feminina, Cláudia!!!
ResponderExcluirobrigada, Alessandra. é um prazer enorme receber vc no meu teapot. beijo grande :)
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