sábado, 2 de março de 2013

Livro de resenhas publicadas na Revista Pessoa: Delicados Abismos


        Pescar em Clarice Lispector o título desta seleção de resenhas/sugestões de leitura é confirmar a óbvia contemporaneidade da autora de A paixão segundo GH. Não existiria ainda uma nova Clarice – certo? Sim, mas não é da conta do tempo de agora pensar em perspectiva; quais se salvarão em genialidade dentro destes autores aqui reunidos, somados a tantos outros e que apenas por uma questão de timing ficaram de fora, só o tempo dirá. Por enquanto, o que nos compete é pensar no que estes autores do hoje estão fazendo para alargar o pensamento e a palavra; em que medida, e por que motivo, são bons contemporâneos e merecem ser conhecidos, lidos, apreciados e estudados.
         Delicado + abismo. Clarice produz um choque interessante, juntando ideias que não combinam em nada; muito pelo contrário: estranham-se a ponto de arranharem-se. Estas palavras são absolutamente apropriadas para descrever as profundezas a que a autora se lançou. É delicada a sua prosa – folha de outono tocando os cílios como um milagre, acácias e sombras se balançando fora das janelas em manhã de um sábado... são algumas imagens usadas por Clarice em seus textos. Um exemplo: “Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza”, está em um dos fragmentos de A descoberta do mundo. Contudo, existe o abismo. E é nele que a escrita de Clarice se joga com força e brutalidade em praticamente tudo. A “desordem” de que fala a citação acima é exatamente o caos, o estado de não aceitação de uma situação (linguística, especialmente) habitual.
         Clarice desparafusa o cotidiano, a pontuação e os elos que usualmente fazem as palavras combinarem entre si. Para atravessar a noite insone e sem fantasmas (inútil querer povoá-la, como as noites de Berna, na crônica “Noite na montanha”), não só é preciso coragem, como é urgente romper os velhos laços (de família?) e lançar-se no abismo – o ponto de partida de uma escrita tensa, como a corda esticada até o limite; mais um pouco e tudo se rompe. Mais um passo, e eis a queda fatal.
        Penso que boa parte da literatura de hoje deve-se muito ao “delicado abismo” de Clarice Lispector. A delicadeza a que me refiro não é, naturalmente, a delicadeza ingênua que aflora sem os sobressaltos, claro que não, mas sim uma delicadeza de espuma (usando a feliz metáfora de João Carrascoza) que faz pensar em um momento mínimo de tranquilidade, um instante-já em que a palavra consegue flutuar, mas que logo será desmanchado porque, todos sabem, a vida é carvão (Ana Paula Maia). É preciso, então, chacoalhar o pensamento e os gestos, pois, de repente, tudo se incendeia; tudo se espatifa e descarrila; tudo cai (diário de nossas quedas, bem o conhece Michel Laub) e o que era doce vira (vermelho) amargo (Bartolomeu já sabia disso).

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