sábado, 2 de março de 2013

O primeiro romance: Esquecer-te de mim

          Meu depois está tão longe de mim, que nem responde quando eu chamo. Só não está mais longe de mim do que eu mesma. Faz um bom tempo que não me encontro. No meio dos destroços, onde me incluo destroçada, o palhaço de brinquedo é ameaça macabra; pode me dar o bote a qualquer momento. Fico só olhando. Ele me olha de volta. Vamos ver quem pisca primeiro.
 – Ai, que susto! – dou um berro, mas logo me afino. Silêncio! – contenho meus excessos. A vizinha Margareth pode ouvir, aparecer e me convidar para jantar na casa dela. Gritei porque meu pé ficou enroscado na canela e deu um nó. Quase me espatifo, dentes no chão.
  Alguém já disse para ter medo da tristeza. Não é um sentimento morto, como se imagina. A tristeza é um ser vivo: tem pernas e braços enormes, e, quando chega perto, me embrulha para dentro de uma cova sem deixar vestígio de gente do lado de fora. Sem perceber, lá vou eu, nos braços da tristeza para lugar nenhum.  Meu chão hoje balança. A cadeira onde me sento tem os pés fincados na beiradinha de um abismo - uma leve mexida e despenco. 
Tanta história amassada dentro das caixas de mudança que adio o momento de abri-las.  Quando eu começar a desembrulhar tudo, nem sei. Medo de tocar nas roupas e nos objetos. Parecem vivos também. Vai que uma das camisas me enforca no fingimento de um abraço de pêsames?
Chegaram ao final da tarde as caixas. Anoiteço junto. E me desembrulho. Os pedaços do tempo estão esmigalhados no que se aperta ali dentro. O resto se esparrama em frangalhos por todo um quarto de despejo.
A casa está tomada por insetos. Baratas vermelhas com bolinhas brancas nas costas, joaninhas transgênicas; pernilongos gigantes, mas bobos, que não voam e se deixam matar com facilidade.  E ainda lacraias sobem e descem pelos armários. Os bichos se misturam às roupas e aí acontece: pego uma peça e, de repente, esmago um deles. Será que todos eles podem me ver ou só eu os vejo? Se a barata não tiver olhos de ver quem delira sou eu.
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Livro de resenhas publicadas na Revista Pessoa: Delicados Abismos


        Pescar em Clarice Lispector o título desta seleção de resenhas/sugestões de leitura é confirmar a óbvia contemporaneidade da autora de A paixão segundo GH. Não existiria ainda uma nova Clarice – certo? Sim, mas não é da conta do tempo de agora pensar em perspectiva; quais se salvarão em genialidade dentro destes autores aqui reunidos, somados a tantos outros e que apenas por uma questão de timing ficaram de fora, só o tempo dirá. Por enquanto, o que nos compete é pensar no que estes autores do hoje estão fazendo para alargar o pensamento e a palavra; em que medida, e por que motivo, são bons contemporâneos e merecem ser conhecidos, lidos, apreciados e estudados.
         Delicado + abismo. Clarice produz um choque interessante, juntando ideias que não combinam em nada; muito pelo contrário: estranham-se a ponto de arranharem-se. Estas palavras são absolutamente apropriadas para descrever as profundezas a que a autora se lançou. É delicada a sua prosa – folha de outono tocando os cílios como um milagre, acácias e sombras se balançando fora das janelas em manhã de um sábado... são algumas imagens usadas por Clarice em seus textos. Um exemplo: “Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza”, está em um dos fragmentos de A descoberta do mundo. Contudo, existe o abismo. E é nele que a escrita de Clarice se joga com força e brutalidade em praticamente tudo. A “desordem” de que fala a citação acima é exatamente o caos, o estado de não aceitação de uma situação (linguística, especialmente) habitual.
         Clarice desparafusa o cotidiano, a pontuação e os elos que usualmente fazem as palavras combinarem entre si. Para atravessar a noite insone e sem fantasmas (inútil querer povoá-la, como as noites de Berna, na crônica “Noite na montanha”), não só é preciso coragem, como é urgente romper os velhos laços (de família?) e lançar-se no abismo – o ponto de partida de uma escrita tensa, como a corda esticada até o limite; mais um pouco e tudo se rompe. Mais um passo, e eis a queda fatal.
        Penso que boa parte da literatura de hoje deve-se muito ao “delicado abismo” de Clarice Lispector. A delicadeza a que me refiro não é, naturalmente, a delicadeza ingênua que aflora sem os sobressaltos, claro que não, mas sim uma delicadeza de espuma (usando a feliz metáfora de João Carrascoza) que faz pensar em um momento mínimo de tranquilidade, um instante-já em que a palavra consegue flutuar, mas que logo será desmanchado porque, todos sabem, a vida é carvão (Ana Paula Maia). É preciso, então, chacoalhar o pensamento e os gestos, pois, de repente, tudo se incendeia; tudo se espatifa e descarrila; tudo cai (diário de nossas quedas, bem o conhece Michel Laub) e o que era doce vira (vermelho) amargo (Bartolomeu já sabia disso).